terça-feira, 14 de abril de 2009


«No passado verão dei-me a um trabalho um pouco pueril. Juntei, em ar de narrativa, umas lembranças da minha infância. Tentava-me a literatura biográfica. Mas logo pus de parte o meu intento; não me sentia madura para ele! Creio que só por isso o suspendi. (...)
Aquela história da minha infância e da minha adolescência, que me andou uns tempos um pouco mais viva no espírito, não sei por que disparatada ambição de me descrever e de me chorar desde os meus mais recuados sobressaltos de coração... aquela história, para não ficar reduzida a um drama estreito e piegas, pedia-me uma tal observação rememorativa, isto é, um sentido tão delicado de presença e de distância, de paixão e de crítica; um tão fino espectadorismo, tanta serenidade e poder de análise, de evocação e de reconstrução, que afinal me excedem, que eu reconheço perfeitamente ultrapassarem-me! Porque eu não me queria pintar irrealisticamente, nem aos outros...
(...)
Projectada no meu passado infantil, ou retirada, erguida dele para melhor o justificar e pintar, eu não gostava de me ver com a figura de um anjo voador, sem pés nem peso, sem humanidade nem materialidade -- germe fantástico de um ser incompleto e sem pecado... Não gostava realmente de me desfigurar, quer por um excesso de imaginação, quer por debilidade de memória.
Pondo-me às voltas com essa velha história da minha infância desconsolada, da minha adolescência vexada!, eu só gostava de poder tomar as atitudes de um campino no encalço do seu boi manhoso... Um campino destemido, que cortasse todas as voltas ao fugitivo, que o defrontasse e o dominasse, sem por momentos lhe vir a ideia de que andava correndo atrás de um borrego ou de um vitelo.
Eu não queria sair exageradamente defeituosa, nem perfeita, da minha história. Queria manter-me com a pessoal substância que me coube em sorte, e que a educação ora carregou, ora atenuou. Como achar o tom justo para este trabalho? Nunca demasiado subjectivo, nem também amargo, nem descolorido? Tom que se adaptasse aos lugares e às diferentes pessoas... Sem as pinturas bem feitas de pessoas e de casos, adeus evocações e biografia!»

(1992: 118-119)