domingo, 12 de abril de 2009


«Nesta hora tão tranquila, em que tão só me sinto, quero falar mais uma vez do ...
Tenho cá a minha suspeita de que todas as elegantes considerações, que se têm vulgarizado sobre a solidão, partem muito mais dos precisados de solidão do que dos seus conhecedores... Nunca li uma verdadeira queixa contra a solidão!
O homem de letras, por exemplo, diz-se sempre um apaixonado da solidão, daquele isolamento que o faz engrandecer-se, expandir-se. Considera a solidão uma circunstância útil à sua actividade; a solidão que tão frequentemente lhe falta!
Tal solidão, quanto a mim, não chega a ter um significado moral. Pode-se comparar à temperatura, a um estado físico. E até me parecem mal empregadas as palavras espirituosas dos homens gabando-a, ou implorando-a... Uma outra solidão, já mais espiritualizada, é a de todo aquele que se considera ímpar, estranho às outras criaturas. Li não há muito tempo um artigo de um escritor português descrevendo este género de solidão. Como um verdadeiro filósofo, sem sinal de dor. Falava-nos do prazer da companhia dos outros homens e ao mesmo tempo da solidão de cada espírito, que nunca encontra em outro o seu perfeito desdobramento, o seu complemento...
Em todo o caso, esta solidão sempre nos regala de visões e de panoramas sobre a diversidade dos espíritos! É a grata, a curiosa solidão dos que criticam os outros, e com isso gozam.
Mas o que nunca, nunca li, talvez por todos os homens serem muito orgulhosos, foi a descrição da solidão real! Da solidão do desamparado; do só, profundamente só.
E também ainda eu a não serei capaz de descrever. Julgo que a conheço, que a sinto, mas acho-a de uma índole tão complexa, tão avassaladora, tão vazia de factos e tão cheia de amargos, que me sinto coacta. É uma coisa pobre e de má tradução.
Estou-me referindo à solidão e ao estado interiormente deprimido daqueles a quem tudo falta. O calor humano, a reciprocidade das relações, o interesse dos outros, a sua companhia!
Esta solidão ninguém a tem chorado, talvez pelo seu aspecto mesquinho, de párias... Mas é mais comum do que se julga.
É a solidão do que vive de aparências. E a de todo aquele que teve um pequeno desejo de ternura, ou de expansão, o desejo de qualquer bem, de ordinário acessível, e que o perdeu. Que já nem o reconhece! É a solidão de quem não tem a quem fale, a quem peça, nem a quem mande... A solidão de quem vê sol, lua e estrelas sem o mínimo gosto, ou com um gosto artificial, já desinteressado!
Mas conhecer-se uma solidão destas não quer dizer descrevê-la... No entanto, eu ainda estimava vir a apreciar uma pintura do estado de um espírito avassalado por ela. Uma pintura fiel e compreensiva! Uma pintura justa, ora da sua depressão, ora da sua irritação. Umas palavras verdadeiras sobre este estado de íntima amargura!
Mas as criaturas são egoístas. Todos se defenderiam e cansariam de quem se lembrasse de falar em tal! O mal dos outros enfada, por isso se faz sempre todo o possível por o anular, o reduzir... o calar.
Só! Nunca, nunca serás suficientemente vingado nem desafrontado da secura do mundo!»

(1992: 54-55)