quarta-feira, 15 de abril de 2009


«A G. é reservada. É o tipo da estudante solitária, cheia de pensamentos e de limites. É uma rapariga triste, uma flor fechada! Mas procurou-me para me dizer com os olhos brilhantes e cheios de ternura, que me entende. Que sempre me estimou e que eu bem o sabia... É verdade. Pelos seus dezasseis anos, que simpatia ela tinha por mim, que contava exactamente mais dezasseis que ela!
E a G. hoje sabe dizer, di-lo até muito melhor do que eu, com seca melancolia, com desprendimento, o enfado que nos pode merecer tudo o que nos rodeia... Diz que se admira de andar por onde anda, de ouvir o que ouve e de que todos os dias sejam o que são, tão inaleráveis e estúpidos... Que o não ter ainda casado não pode explicar todos os seus desencantos.
Diz-me isto andando, com absoluta indiferença e tanta sinceridade que me punge. Fala-me como se não houvesse mais ninguém que nos pudesse ver nem ouvir, no carro e na rua. Com um desejo irreprimido de confidência, mas sem nenhum mistério. E eu julgo sentir, receber a alma intacta das mulheres, talvez como eu, talvez melhores do que eu, mais decididas e mais francas, nas minhas fracas mãos. E chego a achar demais para mim! A achar que não posso dar aos outros nada do que eles precisam!
A G. não é arrebatada, fala alto mas com igualdade. Ainda tem muito de criança, sendo uma desencantada como é. Há realmente uma idade em que todos mais ou menos assim somos. Mas a G. é inteligente, dá ao seu desencanto um cunho que o amplifica, lhe tira toda a banalidade.
Uma coisa que ela me diz que fica a vibrar em mim como uma pancada. E é, que se admira que eu ainda tire algum gosto de certas coisas... Refere-se aos meus exteriores românticos, aos meus louvores dos aspectos e do tempo e dos lugares. Admira-se... A ela não a comovem!
O seu reparo não tem nada de vulgar, nem de estreito. Para mim tem mesmo o significado de uma condenação do superficial, de uma condenação das consolações fáceis e até da poesia pura...
Com a sua breve observação a G. condena o que se pode chamar e tem chamado "a literatura pela literatura". Achou nos meus livros, que eu lhe ofereci com certo receio, o eco de um mal comum, crível. Mas ainda lhe parecem livros enfeitados, menos puros, menos ascéticos, menos profundos, menos límpidos do que ela desejaria! Foi isto que a G. me quis dizer, com certeza. Assim o entendi. Tal como se ela literalmente mo tivesse dito.
De outros o tenho eu pensado tal qual! De outros? De quase tudo o que tenho lido... Porque não o havia ela de pensar de mim?
Mas eu respondi depois à G., dificilmente, é verdade (a clareza custa-nos!) que as nossas fugas poéticas são uma meia dissimulação e uma descarga inocente, fatal, de dramas que vivemos, até sem os entendermos!
Pus talvez também em más palavras a minha íntima verdade.»

(1992: 152-153)